ARTIGO - O SISTEMA DE MODA
worldfashion • 20/01/25, 08:59BY OLIVIA MERQUIOR
Moda não é uma roupa, não é vestuário, nem indumentária. Moda é um sistema.
Como desvelar o sistema? O que a moda pode aprender com o filme “Ainda Estou Aqui”?
Aletheia é um conceito da filosofia da arte que tenta explicar o momento em que nos deparamos com obras ou situações que rompem uma percepção do mundo.
A palavra vem do grego antigo, onde a- (negação) e lēthē (ocultação ou esquecimento) se juntam para expressar esse registro tão potente e transformador que nunca mais será esquecido.
Na década de 30, o polêmico filósofo Martin Heidegger trouxe Aletheia para o mundo moderno. Em suas conferências, ele defende que a arte pode revelar a verdade por meio de um processo de desocultação. O interessante é a separação que ele faz entre a experiência de criação e o objeto que permanece no mundo.
Quando li “A Origem da Obra de Arte”, fiquei bastante perturbada. Para Heidegger, o ser-arte acontece no momento de construção da obra, em um chronos suspenso em que “o artista posta-se diante da obra como algo indiferente, quase como uma passagem que se autoaniquila para a produção da obra, no ato de criar”. O artista como corpo e a arte como objeto se fundem em Aletheia. Quando chega ao museu, a obra vira objeto e, segundo ele, sua potência de desvelamento (ser-arte) não está mais ali. Aletheia instala um mundo.
Não apenas obras de arte (no conceito tradicional) têm o poder de desvelar coisas que estão diante de nós, mas que, por uma busca de conformidade ou conveniência, não enxergamos. O olhar do artista é aquele que, ao se deparar com um alvorecer, é arrebatado pela grandiosidade do gradiente de cores que se desmancham no infinito. A Aletheia, porém, essa rachadura nas nossas certezas, pode acontecer de forma menos agradável.
Diante de um acidente, o olhar desinteressado de um artista pode ser exposto à estranheza de um crânio esmagado. Até aquele momento, uma cabeça era parte íntegra de um corpo, e nada se pensava sobre as texturas de seu interior. Ao vê-la espatifada como porcelana derramando seu conteúdo vermelho, alaranjado, viscoso, mole, o artista nunca mais olhará para uma cabeça em pleno funcionamento da mesma forma.
Diferente de um médico, ensinado a compreender a cabeça por suas funções e utilidade, no olhar desinteressado do artista, o arrebatamento do crânio esmagado pode desvelar uma verdade que reorienta totalmente seu estar-no-mundo.
Uma pintura que desvela (aletheia) um mundo inteiro. Heidegger menciona esta obra específica de Van Gogh (Par de Sapatos, 1895)
Aquilo que nos olha e aquilo que queremos ver
Esse conceito de busca pela verdade, não por meio de fatos, mas por uma compreensão transformadora do mundo, está presente na poesia delicadamente violenta do roteiro de Ainda Estou Aqui.
Porém, o que mais me interessa nesse artigo é traçar uma analogia entre o olhar convenientemente preservado sobre o fazer cultural, tanto no cinema quanto na moda, no mundo de hoje.
Para que uma obra de arte seja capaz de gerar o arrebatamento de um alvorecer ou de um crânio esmagado — seja em filme ou em um objeto vestível —, ela precisa carregar um “ser”, algo difícil de explicar.
Não à toa, a maioria das obras filosóficas não são leituras fáceis de enfrentar, e não por acaso, definir o que é uma obra de arte permanece uma tarefa polêmica.
Eu não fui arrebatada pelo filme. Chorei, me maravilhei com a qualidade cinematográfica, com os detalhes da direção de arte, e sou fascinada pela inteligência dramática de Fernanda Torres. O momento Aletheia não chegou para mim naquela sala de cinema, mas aplaudi o fato de estar diante de uma obra que, sim, considero capaz de vencer o mercado internacional. Afinal, o mercado de prêmios é menos movido por Aletheias e mais por uma visão desvelada de como o sistema funciona.
Quando aplaudimos Fernanda Torres pelo seu merecido globo, a sensação é de que o país venceu junto com ela. Quando vemos jovens estilistas nacionais serem indicados a louros no exterior, também sentimos isso. É uma sensação de alívio, como se nem tudo estivesse perdido. No mundo das redes sociais, rapidamente surgem fios que começam a se multiplicar, proclamando que este é “o ano do(a) [escolha sua área] brasileiro(a)”.
A moda, principalmente, tem esse impulso motivador. Apesar de não haver premiações nacionais, da principal semana de moda do país (e da América Latina) estar desvalorizada, da mídia não especializada ignorar a moda como cultura e das políticas de fomento praticamente inexistirem para o setor, nas redes sociais, no fim do ano passado, só se falava do grande momento da moda nacional.
Roberto Jatahy, CEO do Grupo Soma — responsável pela expansão da FARM —, alertou, no palco do Iguatemi Talks, que a reputação do Brasil estava muito ruim, o que dificultava todo o trabalho de internacionalização da marca. Uma grande rede social me confidenciou que os investimentos na área de moda para o Brasil haviam sido suspensos por falta de movimentos interessantes. Embaixadas relataram que seus países não estavam priorizando relações com a moda brasileira no momento. Mesmo assim, nas redes sociais, eu continuava sendo impactada pelo otimismo em torno do suposto grande momento da moda nacional.
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