worldfashion • 17/09/15, 11:09
A coleção da Mary sempre foi e será o resultado de muita pesquisa que dá conceito e conteúdo às peças elaboradas e adequadas aos diversos materias que compõe a coleção, segue para apreciação o texto na íntegra e as peças da coleção: DEVAGAR COM O ANDOR QUE O SANTO É DE BARRO
O termo, certamente, surgiu numa procissão em que o padre invocou aos fiéis um ritmo mais lento do caminhar com o andor. Hoje é usado como provérbio, com conotação de menos pressa, de se carregar algo frágil. Volto a usá-lo com o real sentido, o de que devemos carregar nossos santos e crenças com cuidado e atenção, para que não se quebrem. Precisamos resgatar o sentimento do sagrado.
As religiões são hoje, no mundo, grande causa de guerras, falta de paz e intolerância. Quão valiosas seriam elas se nos déssemos conta de que cada uma é uma forma de andar devagar, cuidar do santo de cada um. A busca é sempre a mesma: o acesso ao divino e sua manifestação em nossas vidas.
As religiões são verdadeiros veículos: os rituais, a indumentária, tantas vezes rica e colorida, os cânticos carregam em si o poder de nos transportar a outra dimensão. Penso no cuidado que os monges budistas colocam em cada detalhe de seus templos. O incenso aceso com cautela, as velas que não se apagam com o sopro, os mantras e os malas que seguram, deslizando conta por conta, devagar, mantendo aberto o acesso ao Eu Superior.
Vejo os rituais da igreja católica e o sacerdote que, cada vez que passa em frente do altar, se ajoelha, reconhecendo ali a presença de Deus. As “mães” e “filhos de santo” no candomblé, que, ao acordarem, seguram as contas em suas mãos dando boas vindas a seus orixás e convidando-os a acompanhá-los naquele dia. Ao se recolherem, no fim do dia, preparam com zelo o lugar de descanso dos orixás e ali deitam suas contas.
São muitas as religiões, os rituais. Diversas as maneiras de se manter viva e ativa a voz de Deus. Um passeio por elas nos mostra a existência de símbolos como os peixes, cruzes diversas, serpentes, falos, espelhos, máscaras, tantos deles presentes em várias religiões, mas carregando significados diferentes. Em contrapartida, vemos ícones diferentes servindo de veículo para valores comuns a várias religiões.
Penso que deve existir uma conexão entre religião e acessórios…os malas, rosários, terços e escapulários não deixam de ser colares. Quantas vezes viajamos e adquirimos uma roupa, uma pulseira, um anel, um amuleto, algo que nos remeta ao lugar que visitamos, numa tentativa de prolongar a viagem ou de levar um pedaço dela conosco.
Esses objetos trazem consigo as qualidades desse lugar, da experiência que vivemos ali. Nas religiões, os objetos tornam-se símbolos que evocam as qualidades das imagens, reafirmando suas mensagens. Acredito que os acessórios e os rituais religiosos servem de pontes ao acesso do divino que há em mim e que me liga ao resto do mundo.
Nesta coleção, na busca pela mescla das religiões, lancei mão da mistura de materiais, dos bordados que se matizam, muitas vezes em cores e efeitos propositalmente desordenados. É comum, em um mesmo adorno, a presença de símbolos de seitas diversas, como a sugerir, a quem for usar, uma partilha, uma comunhão com o outro.
Diversas vezes, no estudo para elaborá-la, pensava nos altares mexicanos carregados de flores, comidas e cores, e nos altares hinduístas, budistas e, no meu pensamento, bastaria trocar a imagem do santo adorado, Guadalupe por Buda. No museu Dolores Olmedo, no México, um entalhe em madeira, em que anjos, santos, frutas e bichos faziam parte do mesmo tabuleiro, me levou ao vilarejo Bichinho, próximo de Tiradentes. Lá em Bichinho, na mesma peça também convivem o bem e o mal, o claro e o escuro, a serpente, Eva, Adão e o paraíso.
Incluir os artesãos locais nessa coleção foi muito significativo. Corações confeccionados em folha de flandres, com pintura em esmalte, carregam junto o sagrado e o artesanal. Os bordados, alguns deles executados por associações como a das bordadeiras de Botumirim (MG), carregam, além dessa mistura, o traço da nossa marca, artesanal, sempre em busca pelo que leva a mão do homem.
Um colar com um olho bordado, um medalhão que traz uma mão e um coração, foram inspirados nos ex-votos, na oferenda do testemunho de um milagre. Os anéis vêm com caráter primitivo, como se tivessem sido encontrados em sítios arqueológicos. Têm a superfície irregular, inacabada, levemente tortuosos, sem a pretensão de uma modelagem perfeita - aliás, primam pela imperfeição.
Os acabamentos envelhecidos, ouro velho e prata velha, são os eleitos desta estação e banham a superfície das bijus. Nos colares, a mistura se dá na comunhão de materiais aparentemente díspares. A pedra busca a madeira, a madeira acolhe o cristal, o negro, a transparência. O caráter étnico se deixa mostrar relevantemente. Os brincos artesanais, levemente agigantados, são aposta da temporada: neles a brincadeira de matérias-primas, cores e banhos diversificados em uma mesma peça se faz presente. Lançada recentemente no mercado, uma linha de tiras bordadas religiosas sacramentam pequenos estandartes da nossa linha casa. Os patuás não foram esquecidos e trazem, na miniatura de sua modelagem, a ideia de um micro-estandarte. O especial brinco de pena de pavão e os pingentes de flor de Lótus, a máscara Nô, muito conhecida no teatro japonês, as mandalas com seu significado de unicidade e organização foram executadas pelo método de marchetaria em madeira, pelo mestre Maqueson, e poderão ser usados como relíquias modernas, tamanho o preciosismo.
As bijus são o meu andor. Vou devagar, com muito cuidado, na certeza de que carregam não só o meu santo, mas o seu e a alma secreta do mundo.
Por Mary Figueiredo Arantes
Ficha Técnica: Estilo Juliana Scheid Fotos: Leca Novo Assistente de fotos: Iaque Nacur Stylist: Davi Leite Assistente de estilo: Luiza Oliveira Make up hair: Fairuze Reis /Menu de maquiagem Modelo: Carol Rangel / Mega Models Divulgação: Heloisa Aline